O Brasil vive simultaneamente, em várias “idades histórico-sociais”. Presente, passado e futuro entrecruzam e confundem-se de tal
maneira que se pode passar
de um estágio histórico a
outro pelo expediente mais
simples: o deslocamento no espaço. Onde cada estágio histórico corresponde uma situação humana
e está,
organiza-se, estrutural e dinamicamente, como um mundo
material e moral com sua função própria. As
várias situações
humanas
possíveis
põem à luz, no conjunto,
os diferentes
padrões
de
integração sociocultural e pelo
modo
dele vincular-se com
as tendências atuantes de
modernização daquela
sociedade.
O dilema racial brasileiro, na forma em que ele se manifesta na cidade
de
São Paulo, lança suas raízes em fenômenos de estratificação social. Tendo-se em vista a estrutura social da comunidade como um todo, pode-se afirmar que, desde o último
quartel do século XIX até hoje, as grandes transformações histórico-
sociais não produziram
os mesmos proventos para todos os
setores da população.
Entende-se que ao longo da história o mundo dos brancos foi profundamente alterado pelo surto econômico
e pelo desenvolvimento social, ligados à produção e à exportação do café, no início, e à urbanização acelerada
e a industrialização, em seguida. O mundo dos negros ficou praticamente à margem desses processos dentro dos muros
da cidade, mas não participasse coletivamente, de
sua vida econômica, social e política.
Quando o sistema de castas
foi abolido legalmente, na prática, a população negra e mulata continuou reduzida a
uma condição social análoga a preexistente. Daí resulta que a
desigualdade racial manteve-se
inalterável, nos termos da ordem social inerente à organização social desaparecida legalmente, e que o
padrão assimétrico de relação social tradicionalista (que
conferia ao “branco” supremacia quase total e
compelia o “negro” à obediência e à submissão) encontrou condições materiais e morais para se preservar em
bloco.
Cabe ressaltar
que São Paulo, somente
a partir do último quartel do século XIX ela sofre modificações que a convertem propriamente em cidade, ao estilo de outros
agregados urbanos da
época. Os centros urbanos
provocavam certas necessidades especiais que ampliavam a divisão do trabalho social. Neles surgiram
ocupações e
serviços que alargavam a área
de atividade construtiva
do escravo e, especialmente, que
não podiam ser exercidos
nem pelo
escravo nem
pelo homem livre. O liberto desfrutava
assim,
algumas
oportunidades
econômicas que
lhe permitiam
integrar-se
na estrutura ocupacional das
cidades e
que forçavam
os brancos a terem interesse pelo seu adestramento e
aproveitamento em tal área.
Em São Paulo, o início da expansão econômica coincide
com a concentração crescente de imigrantes de origem europeia e com a crise do próprio regime servil. Assim ao eclodir a abolição, estavam distribuídos nas ocupações menos desejáveis e compensadoras, pois as oportunidades melhores haviam sido
monopolizadas pelos imigrantes. Neste sentido
os negros/as ficaram relegados aos papeis secundários.
O negro com
a abolição
ele
perdeu os liames humanitários que
prendiam aos brancos
radicais ou
inconformistas e deixou de formar uma consciência
social própria da situação.
Como foi mais tutelado no
processo revolucionário, o negro
não tinha
uma visão objetiva e autônoma
dos seus interesses e possibilidades. Converteu a
liberdade
em
um fim em si para
si, sofrendo com a
destituição
uma autentica espoliação –
a última pela
qual a escravidão ainda
seria responsável.
No entanto, parecia que os brancos
evidenciavam “falta de responsabilidade” e que os negros seriam
“emprestáveis” ou “intratáveis”, fora do “jugo
da
escravidão”. De outro
lado,
o
próprio negro
pós
a
liberdade acima de tudo, como se ela fosse
um valor intocável e absoluto.
Por falta de socialização prévia, não
sabia avaliar corretamente a natureza e os limites
das obrigações decorrentes
do contrato
de trabalho.
Pode-se dizer
que a abolição protegeu-o na esfera dos “homens
livres” sem que eles
dispusessem de recursos
psicossociais e
institucionais para se ajustar
à nova posição
na sociedade.
Vivendo em condições deploráveis, o negro não tinha elementos para cultivar ilusões sobre
o presente ou
sobre o futuro. E ainda acumulava pontos negativos, pois o branco percebia e explicava etnocentricamente
os aspectos dessa situação de que tomava conhecimento, através de cenas deprimentes, ou do noticiário dos
jornais, imputando ao próprio negro a “culpa”
pelo que ocorria (como se o negro “não tivesse ambição”, “não gostasse
de trabalhar”, “fosse
bêbado”, “tivesse propensão para
o crime e a prostituição”, e “não fosse
capaz de dirigir sua vida sem a direção e o jugo do branco”). Contudo,
o drama em si mesmo não comoveu os
brancos nem foi submetido a controle social direto ou indireto; só serviu para degradar ainda mais a sua
vítima
no consenso geral. O
negro
e o mulato não dispunham de
técnicas sociais que
lhes facultassem o controle eficiente de seus dilemas e a superação rápida dessa fase de vida social anônima. A miséria associou-se à anomia social,
formando uma cadeia de ferro
que
prendia o negro, coletivamente, a um destino inexorável.
Deve-se considerar as causas e os efeitos dos movimentos sociais, que
se constituíram no meio negro de São Paulo. Nenhum
agregado humano
poderia suportar, de modo
totalmente inerente,
uma
situação como
a que a população negra e mulata enfrentou naquela cidade. Aos poucos, foram-se esboçando
e criando força algumas tímidas tentativas de crítica e de autodefesa. Entre 1925 e 1930, essas tentativas tomaram corpo e
produziram seus primeiros frutos maduros, expressos numa
imprensa
negra, empenhada em difundir formas
de autoconsciência da
situação racial brasileira e do “abandono negro”, e
também em organizações dispostas
a levar o “protesto da gente negra” ao terreno prático. Pela primeira vez na história social da cidade, negros
e mulatos coligavam-se para defender os interesses econômicos, sociais e culturais da “raça”, buscando
formas de solidariedade e
de atuação social organizada que redundassem em benefício da reeducação do
negro, na elevação progressiva de sua participação no nível de renda, no estilo de vida e, por converter-se em cidades inclusiva visto a busca adesão ao movimento, estes só serviram para criar um marco histórico e
redefinir as
atitudes
ou
os
comportamentos
de negros
e mulatos. Desmascarando a
ideologia racial dominante, eles elaboram uma contra
ideologia racial que aumentou a área de percepção e de consciência da
realidade racial
brasileira por
parte do negro.
Como as reivindicações eclodiam de forma pacífica, elas não germinavam disposições de segregação social
e não alimentaram tensões ou conflitos de
caráter racial. Nesse sentido, eles foram socialmente construtivos,
difundindo novas imagens
do negro, recalibrando sua maneira de resolver seus problemas e tentando
absorver as técnicas sociais e
aproveitar as oportunidades econômicas de
que desfrutavam os brancos. Cabe ressaltar, que os círculos mais influentes, imbuídos de
atitudes e avaliações tradicionalistas, reinterpretaram os movimentos sociais
surgidos no meio negro como um “perigo” e como uma “ameaça”.
Por volta do Estado Novo, os movimentos foram proscritos legalmente, sendo fechada
a Frente
Negra Brasileira, a principal organização aparecida nesse período. Esboçaram-se, com a
extinção do Estado Novo
entre 1945 e 1948, algumas tentativas de reorganização daqueles movimentos.
Mas todas elas falharam
redondamente, pois os negros e mulatos em ascensão social passaram a dar preferência a uma estratégia
estreitamente egoísta
e individualista de
“solução do problema do negro”. Pode-se considerar que os brancos desfrutam de uma hegemonia
completa e total, como se a
ordem social vigente fosse, literalmente,
uma combinação
híbrida do regime de castas e do
regime
de classe.
Em termos gerais, o busílis do “dilema
racial brasileiro” – tal como ele
pode ser caracterizado
sociologicamente através de uma situação histórico – social de contato de São Paulo – reside mais no
desiquilíbrio existente entre
a estratificação racial e a ordem social vigente que
em
influências etnocêntricas especificas e
irredutíveis. No entanto, o padrão de relação racial tradicionalista continha influências sócio dinâmicas etnocêntricas. E elas não desapareceram. Continuam fortes e atuantes graças ao arcabouço social que
preserva uma concentração racial da renda do prestígio social e do poder mais representativo de uma “sociedade de castas”
que de uma “sociedade de classes”.
O
preconceito e a discriminação surgiram na
sociedade brasileira
como uma contingência
inelutável da escravidão. A discriminação, por sua vez, emergia e objetivava-se
socialmente como requisito institucional da relação
senhor-emergia
e objetivava-se socialmente como requisito institucional da relação senhor-
escravo e
da ordem social correspondente. Como o fundamento da distinção entre
o senhor
e o escravo
procedia de sua condição social, a discriminação se elaborou, primariamente, como um recurso para distanciar socialmente categorias raciais coexistentes e como um meio
para ritualizar as relações ou o
convívio entre o
senhor e o escravo. Enfatiza-se
que os escravos eram percebidos e representados como
“inimigos da
ordem” pública
e privada e para mantê-los sob o jugo senhorial e na condição de
escravo, acrescenta-se a violência como meio normal
de repressão, de disciplina e de controle.
Em suma, diferenciaram-se dois mundos sociais distintos e opostos, entre dois estoques raciais que
partilhavam de culturas diferentes e
possuíam destinos sociais antagônicos. As fontes de
distinção e de separação não eram primariamente raciais.
Mas convertiam-se
em
tal, na medida em que
atrás do senhor
estava o “branco” e, por trás do escravo,
ocultava-se o
“negro” ou “mestiço”.
Pondo-se de lado a era da escravidão, temos diante de nós três problemas marcantes. O primeiro diz respeito
à
fase de transição, em
que
o
padrão tradicionalista e assimétrico de relação
racial subsiste inalterado. O segundo refere-se ao que acontece quando a ascensão social do negro provoca alguma
espécie de
ruptura no paralelismo ao regime de classes sociais o que redundaria na absorção da desigualdade
racial
pela ordem social
competitiva em expansão.
Estes fatos são deveras significativos do ponto de vista
sociológico. Eles indicam duas coisas essenciais.
Primeiro, que as inovações que afetam o padrão de
integração da
ordem social nem por isso reperceitem, de modo
direto, imediato e profundo, na ordenação das relações raciais. Onde
persiste o mundo tradicionalista brasileiro, é inevitável que sobreviva, mais ou menos
forte, o paralelismo entre “cor” e “posição social”, ainda
que os agentes humanos envolvidos neguem essa
realidade.
O preconceito e a discriminação racial são expressões puras e simples de mecanismos que mantiveram, literalmente, o passado no presente, preservando a desigualdade racial ao estilo da que imperava no regime de castas. Isso significa, naturalmente, que onde o tradicionalismo se perpetua incólume, na esfera das
relações raciais – por
mais que se propale o contrário – ele acarreta a sobrevivência tácita do paralelismo entre “cor” e
“posição social”.
Com o caminhar da história, um novo perfil de negro foi surgido. Diante desse
“novo negro”, o branco vê-se numa posição confusa
e residualmente ambivalente. O “novo negro”
já é, em si mesmo, um tipo humano relativamente complicado: possui uma mentalidade
mais secularizada e
urbanizada, não teme a
livre competição com o branco e, sobretudo, pretende “vencer na
vida” a todo custo. Rompe
os cordões materiais ou morais com seu “ambiente de origem”, negando-se
a conviver com os “negros pobres”, a respeitar a sociedade agreste, que torna o “negro
rico” uma vítima indefesa dos
amigos
ou parentes “em necessidade”, e a manter um nível de vida modesto.
Refuga o
“negro desleixado”, que seria o fator da eterna degradação do negro pelo branco; e combate os movimentos sociais de cunho racial, assoalhando que “o problema
não é esse” e
que eles podem se tornar
contraproducentes, ao
despertar
ilusões entre os próprios negros
e ao fomentar a animosidade do branco.
De maneira mais
ampla, entende-se que o negro se apresenta como o principal agente humano de
modernização das raciais na
cidade, pois objetiva
uma forma mais ativa
e constante de repulsa
às manifestações
tradicionais do preconceito
e das
discriminações
raciais.
No momento em que o
negro
rompe com os estereótipos e com as conveniências
dissimuladas, impondo-se
socialmente por seus méritos pessoais,
por sua riqueza e por seu prestigio, quebra-se inevitavelmente uma das polarizações que
permitia disfarçar
o paralelismo entre
“cor” e “posição social”. O
preconceito e
a discriminação racial
sobem à tona sem máscara.
Por outro lado, os brancos de
propensão realmente tolerante e
igualitária procuram amparar
esse
“novo
negro”, resguardando-o dos efeitos da
pressão indireta e estimulando-o a prosseguir em suas ambições. Tais
brancos hostilizam o farisaísmo do preconceito e da discriminação racial dissimuladas, ao mesmo tempo que procuram, embora
por vezes insatisfatoriamente, “dar
a mão ao negro que merece”. Por isso, como produto
reativo da
emergência do “novo negro” e
pelo impacto de
sua personalidade ou de
seu
sucesso, alguns
círculos da população branca
também se envolvem de maneira
mais profunda na modernização dos padrões vigentes de relações raciais.
No entanto cabe ressaltar, que o meio propriamente dito na reage
uniformemente ao êxito do “novo negro”.
Contudo, é impossível prever o que vai acontecer no futuro remoto, em matéria
de relações raciais, uma
vez que, há quem tenha medo de perder
prestigio social “aceitando o negro”; há
também os que aceitam o negro
na órbita do convencional, afastando-se
deles na área da
verdadeira amizade
e da
comunhão afetiva; há, por fim,
os que sustentam a todo custo certas representações arcaicas, repudiando qualquer
possibilidade de incluir-se o negro em posições
que envolvam o exercício de
liderança e de dominação.
Entende-se que
a concentração racial da renda, do prestigio social e do poder as tendências muito débeis de
correção
dos efeitos negativos
que
ela
pareça
inexoravelmente e as
propensões etnocêntricas
e discriminativas
poderão facilitar a absorção gradual do paralelismo entre “cor” e “posição social” pelo
regime de classes.
Parece indubitável que essa ameaça existe. O pior
é que ela uma realidade que só pode ser combatida
de forma consciente e organizada.
O modo geral para
os segmentos brancos da sociedade, o que importa, vitalmente, não é o destino da democracia racial, mas a continuidade
e o ritmo de expansão da ordem social competitiva. Os segmentos
negros e mulatos da sociedade, por sua vez, não possuem elementos para desencadear e generalizar o estado de espirito por uma defesa consciente, sistemática
e organizada da
democracia
racial. Por conseguinte, a
democracia racial fica entre
o seu destino, sem ter
campeões que a defendam como um valor absoluto.
Ressalta-se que se a formação e
o desenvolvimento espontâneo das classes sociais enredarem a
desigualdade racial na
desigualdade
inerente à
ordem social competitiva, então
ela estará fatalmente condenada.
Continuará a ser um belo mito.
Referência bibliográfica na íntegra:
FERNANDES. Florestan. O negro
no mundo dos
brancos. São Paulo. Global. 2007.