Em uma sociedade historicamente
marcada
por diversas formas
de violência e onde diversos sujeitos são atacados
e menosprezados
por determinadas
características,
discussões
acadêmicas e
atuação dos
movimentos sociais no debate sobre gênero
tem um papel importante no curso da história.
O termo gênero em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a
homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre
uns e outras são percebidas como resultado dessas diferenças. O termo gênero referi-se também ao
caráter
cultural
das distinções entre homens
e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade.
Um rápido olhar sobre alguns indicadores no Brasil, mostra que a
igualdade entre homens e mulheres está longe
de ter sido atingida. As mulheres têm mais anos de
estudo, em média, do que os homens. Segundo o
Censo Escolar
referente a 2005,
as meninas são pouco mais da metade
dos que terminam o ensino fundamental e o ensino médio. No nível superior, a diferença é ainda maior. Mas o maior número de anos
de estudo das mulheres não se
reflete ainda numa
igualdade
salarial, o que se agrava mais ainda quando se trata de mulheres negras. Em média, as mulheres brancas ganham 40% menos do que os homens para
o mesmo trabalho; e as
mulheres negras, 60% menos.
Quando pensamos nas horas necessárias para realizar o trabalho de cuidar da casa e dos filhos, percebemos que no Brasil as mulheres que
trabalham fora, além de ganhar menos que os homens, trabalham mais horas
que eles. Isso porque não costuma haver uma divisão equitativa do
trabalho doméstico.
Se, além de
pensar nas diferenças nos salários e nas horas de
trabalho, também consideramos a violência
sofrida pelas mulheres no Brasil, o quadro de desigualdades se torna mais crítico. Uma pesquisa realizada pela FPA chegou ao cálculo de
que a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil; 33% das mulheres
entrevistadas sofreram violência física (ameaças com
armas,
agressões físicas,
estupro conjugal ou abuso);
27% sofreram violências psíquicas; 11%
por cento afirmaram já ter
sofrido assédio sexual. Se os estupros massivos
em situação de guerra estão longe de nossa realidade, a violência sexual, em situações de custódia
do Estado, pode assumir conotações
igualmente estarrecedoras.
Vale lembrar a detenção no Pará, em 2007,
de uma adolescente pobre, de 15 anos, acusada de roubo. A
garota foi mantida
durante 26 dias em uma cela de uma delegacia de polícia
com
mais vinte homens. De acordo com as narrativas dos jornais, "a
jovem disse ter sofrido abuso sexual dos cerca
de vinte presos da cela, teve que
fazer sexo com eles em troca de comida e foi agredida, apresentava hematomas
e marcas de queimadura
de cigarro pelo corpo". Após essa terrível notícia, foram difundidos outros casos de mulheres
detidas em
celas "mistas",
em diversas partes do país.
Esse conjunto de indicadores e observações torna incontestável a
necessidade, também no Brasil atual, de
fazer esforços para compreender os lugares diferenciados
e desiguais que as
mulheres ocupam em diversas
áreas da vida social, prestando
atenção aos aspectos culturais que participam na delimitação desses
lugares.
O
conceito de
gênero
foi elaborado e reformulado em momentos específicos da história
das
teorias sociais
sobre a "diferença sexual" e foi inovador
em diversos sentidos. O psicanalista Stoller, em 1963, teria
formulado o conceito de identidade de gênero para distinguir entre natureza e cultura. Assim, sexo está vin-
culado à biologia (hormônios, genes, sistema nervoso e morfologia)
e gênero tem
relação com a cultura (psicologia, sociologia, incluindo
aqui todo o aprendizado
vivido desde o nascimento). O produto
do
trabalho da cultura
sobre a biologia era a pessoa marcada por gênero, um homem ou uma mulher. Stoller
entendia que quando nascemos somos classificados pelo nosso corpo,
de acordo com os órgãos genitais, como menina ou
menino. Mas as maneiras de
ser homem ou mulher
não
derivam desses genitais, mas de aprendizados que
são
culturais, que variam segundo o momento histórico, o lugar,
a classe
social. Cabe ressaltar que às vezes, algumas pessoas nascem com traços genitais de um sexo, mas sua "identidade
de gênero" está associada
ao
outro sexo. Stoller afirmava que esse
conjunto de possibilidades existe porque
a "identidade de gênero", que está no plano da cultura, dos hábitos e dos aprendizados, não deriva
dos genitais, que "pertencem" à natureza, à biologia." Por isso, é preciso separar
natureza de cultura, entendendo que
o que define as diferenças
de gênero está
no âmbito da cultura.
Porém, as formulações de
gênero
que tiveram impacto na teoria social foram elaboradas a partir do pensamento feminista, na década de
1970.
Esse movimento social, que buscava para as mulheres os mesmos
direitos dos homens, atuou decisivamente na formulação
do conceito de gênero. As feministas
utilizaram a ideia
de gênero
como diferença produzida na
cultura, mas uniram a
essa noção a
preocupação
pelas situações
de desigualdade vividas
pelas mulheres.
A "primeira onda" do
feminismo ocorreu entre o final do século XIX e XX. Esse primeiro momento se
caracterizou por uma importante mobilização no continente europeu, na América do Norte e em outros
países, impulsionada pela ideia de "direitos iguais à cidadania", que pressupunha a igualdade entre os sexos.
Entre
as
décadas de 1920 e
1930, as mulheres conseguiram, em vários países, romper com algumas das
expressões mais agudas de sua desigualdade em
termos
formais ou legais.
As leis eram diferentes para homens e mulheres. As feministas reivindicavam, entre outras coisas, poder votar
(numa época em que só os homens votavam nas eleições), ter acesso à educação (ter o mesmo tempo
de escolaridade dos meninos)
e poder ter posses e
bens (quando só homens
podiam ser proprietários de uma
casa,
por exemplo).
Segundo a pesquisadora estadunidense Mead, toda cultura determina, de algum modo, os papéis dos homens e das mulheres, mas não o faz necessariamente em termos de contraste entre as personalidades atribuídas
pelas normas sociais para os dois
sexos, nem em
termos
de dominação ou submissão.
Trabalhando na perspectiva dos papéis sexuais, autores e autoras como Margaret Mead apontaram para o caráter de construção cultural da diferença sexual. A
perspectiva dos
papéis sexuais
resultou atraente para diversos estudiosos da diferença sexual porque conectava a estrutura social à formação da personalidade, de
maneira relativamente simples. E isso ocorre por meio da "socialização" ou seja, pela incorporação das normas
sociais relativas feminino
e ao masculino. Exemplo
dessa socialização,
é como
colocamos elementos no cotidiano das crianças, meninos
vestem azul, brincam de bola e são mais agressivos, já as meninas
vestem rosa, brincam de boneca e são
mais meigas. Quem
foge disso
é considerado impróprio.
Além disso, a perspectiva dos papéis sexuais permite contestar pressupostos biológicos sobre
os comportamentos de homens e
mulheres, ao afirmar que as atitudes
de uns e outras são diferentes porque
respondem a diferentes expectativas sociais. Entretanto, nessa abordagem, as relações entre
os sexos eram
analisadas sem
prestar
atenção
às desigualdades, às
relações diferenciadas de poder
entre homens
e
mulheres. Essa produção
não demonstrava
interesse em
destacar nem
compreender os fatores
que contribuem para situar as mulheres
em posições inferiores.
Nas décadas de 1950 e 1960, os grupos feministas continuavam lutando pela igualdade de direitos. Mas em
1949 havia
sido publicado um livro chamado, O segundo sexo, que
contestava o efeito dessas lutas para
eliminar
a dominação masculina. O livro foi escrito por Simone de
Beauvoir, filósofa e escritora francesa,
convencida de que para eliminar essa dominação era
necessário muito mais do que reformas nas leis, garantindo, por
exemplo, o direito das mulheres ao voto. Ela
considerava que o verdadeiramente importante era enfrentar os aspectos sociais que situavam a mulher em um lugar inferior. A autora afirmava que retirar as mulheres desse lugar só seria possível ao se combater o conjunto de elementos que impediam que
elas fossem realmente autônomas: a educação que
preparava as meninas para agradar aos homens, para o casamento e a maternidade; o caráter opressivo do casamento para as mulheres, uma vez que, em vez de ser
realizado por verdadeiro amor, era uma obrigação para se obter proteção e um lugar na sociedade; o fato de a maternidade
não ser
livre,
no
sentido
de
que não
existia um controle
adequado da
fertilidade
que
permitisse às mulheres escolherem se desejavam ou não ser mães; a vigência de um duplo
padrão de moralidade sexual, isto é, de normas diferenciadas que permitiam muito maior liberdade sexual aos homens;
e,
finalmente, a falta
de trabalhos e
profissões dignas e bem remuneradas que dessem oportunidade às
mulheres de ter real
independência econômica.
De acordo com Simone na perspectiva da construção social aponta que: "Ninguém nasce
mulher: torna-se
mulher.
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no
seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse
produto [...]".
O segundo sexo é considerado precursor do feminismo da "segunda onda", protagonizado por grupos organizados de mulheres, em diversas partes do mundo, a
partir
da década
de 1960. Em termos políticos, consideram que as
mulheres
ocupam lugares sociais subordinados em relação aos
homens. A subordinação feminina é pensada como algo
que
varia de acordo com
a época histórica e o
lugar.
Essas abordagens questionam o suposto caráter natural dessa subordinação, sustentando,
ao contrário, que
ela
é decorrente das maneiras como a mulher é construída socialmente. Isto é fundamental compreender, pois a
ideia subjacente é a de que o que é construído - ao não ser natural, inato, fixo - pode ser modificado.
Portanto, alterando-se as maneiras como as mulheres são percebidas, seria possível mudar o espaço social
por elas ocupado. Por
esse
motivo, o pensamento feminista da segunda onda colocou reivindicações voltadas
para a igualdade no exercício dos direitos, questionando, ao mesmo tempo, as raízes
culturais dessas desigualdades.
A
categoria “mulher” foi desenvolvida pelo feminismo da segunda onda em leituras segundo as quais a opressão
das mulheres está além de questões de classe e raça, atingindo todas as mulheres, inclusive
as mulheres das classes altas e brancas. O reconhecimento político das mulheres como coletividade ancora-se na ideia de que o que
une as mulheres ultrapassa em muito as diferenças entre elas. Isso criava uma
"identidade" entre
elas.
Considerando que as mulheres eram oprimidas enquanto mulheres e que suas experiências eram provas de
sua opressão, chegou-se a conclusão de
que a opressão feminina devia ser mapeada
no espaço em que as
mulheres a
viviam, isto é, nas suas vidas cotidianas, no lar, nas relações amorosas, no âmbito da família. Esses relacionamentos
eram considerados, sobretudo,
políticos, na
medida
em que "político"
é essencialmente definido como
o que envolve uma relação
de poder.
As feministas procuraram desvendaram multiplicidade de
relações de poder presentes em todos os aspectos da
vida social, nas esferas pública e privada. Em termos teóricos, elas trabalharam com uma ideia global e
unitária
de poder, o patriarcado numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser
visto como uma relação política.
O conceito de patriarcado, útil
do ponto
de vista da mobilização política, colocou sérios problemas no que se referia às particularidades da condição feminina em diferentes lugares e épocas. O pensamento feminista procurou
no patriarcado a idéia de uma
origem, de um tempo anterior, quando teria
começado a
história da opressão das mulheres. E se o
patriarcado teve um início,
poderia ter um fim.
É importante
compreender
que o
patriarcado, assim como outras explicações da origem e
das
causas da subordinação feminina, tinha o objetivo
de demonstrar que a
subordinação da mulher não é
natural e que,
portanto, é possível combatê-la. Pouco a pouco, as hipóteses explicativas sobre as origens da opressão feminina foram sendo questionadas, ao mesmo tempo que se
buscavam ferramentas conceituais mais apropriadas para que essa opressão
perdesse o caráter de algo
natural e imutável.
O conceito de gênero se difundiu
com força inusitada a partir da formulação da antropóloga estadunidense
Gayle Rubin. Seu ensaio "O
tráfico de mulheres: Notas sobre a economia política do sexo", publicado em
1975. Inserindo-se
no debate sobre
a natureza
e as causas da subordinação social da
mulher, Rubin elaborou
um conceito que denominou sistema sexo/gênero. Segundo a autora, esse sistema
é o conjunto de arranjos através dos quais uma
sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana.
Perguntando-se sobre as relações
sociais que
convertem as "fêmeas" em "mulheres domesticadas", a autora
localiza essa passagem no trânsito
entre natureza e cultura, no espaço
da
sexualidade e da procriação.
Para Gayle Rubin, a divisão sexual do trabalho pode
ser vista como um tabu contra
a uniformidade de
homens e mulheres, que divide
o sexo em duas categorias excludentes. Todavia, ela também deve ser vista como um tabu contra
outros arranjos sexuais que não aqueles que
tenham pelo menos um homem e uma mulher, o que
obriga
ao
casamento heterossexual. Assim, o tabu do incesto pressuporia, um tabu anterior, da
homossexualidade. A assimetria de
gênero, a diferença entre aquele que troca
e o que é trocado, origina a
repressão da sexualidade da mulher. Mas é importante perceber que esse é o efeito de um sistema que,
reprimindo a sexualidade da mulher, está ancorado
na obrigatoriedade da heterossexualidade.
O ponto mais importante da
formulação sobre a diferença
sexual nessa autora é pensar em gênero, articulado
à sexualidade, como uma dimensão política. Para Gayle Rubin,
gênero não é apenas uma identificação com
um sexo, mas obriga que o desejo sexual seja orientado para
o outro sexo. E percebe a opressão dos homossexuais como
produto do mesmo sistema
cujas regras e relações
oprimem
as mulheres.
As feministas negras e do "Terceiro Mundo"
consideraram que no sistema sexo/gênero o foco singular no gênero fazia
com que essa
categoria
obscurecesse ou subordinasse todas
as outras.
Sublinhando as
diferenças entre mulheres, elas exigiram que gênero
fosse pensado como parte
de sistemas de diferenças, de
acordo com os quais as distinções entre feminilidade e masculinidade se entrelaçam com distinções raciais,
de nacionalidade, sexualidade, classe social e
idade.
No
entanto, várias autoras que participam desse movimento não concordam em trabalhar
com
a ideia de subordinação/dominação universal das mulheres, dividindo o mundo entre
opressores e oprimidas. Elas preferem explorar situações particulares de dominação mediante análises que consideram o modo pelo qual
o poder opera através de estrutura
de dominação múltiplas e fluidas que se interceptam, posicionando as
mulheres em lugares diferentes e em momentos históricos particulares. E, ao mesmo tempo, prestam
atenção em como as pessoas, individual e coletivamente e opõem a essas estruturas de dominação, nos quais gênero se
articula a classe, raça, nacionalidade, idade, não tem efeitos
idênticos nas mulheres do Terceiro
Mundo.
Nos anos 90 e
2000, várias autoras começaram a discutir
sobre uma "Nova Política do Gênero", movimento
de reivindicações de direitos sexuais que defende os interesses dos intersexos, transexuais e travestis. Considerando que
a distinção entre masculino
e feminino não esgota o sentido
de gênero.
Segundo Judite Butler, um par
de décadas atrás, a noção de
discriminação de gênero se aplicava tacitamente às mulheres. No momento atual, a discriminação das mulheres continua existindo, particularmente quando se
trata de mulheres pobres e/ou negras e/ou do "Terceiro Mundo". Entretanto
discriminação de gênero atinge também homossexuais, transexuais e travestis, sujeitos à violência, a agressões e assassinatos por
conta de sua identidade de gênero.
Sintetizando a trajetória do conceito de gênero, vemos que um termo, que se difundiu
aludindo às diferenças e desigualdades que afetam as mulheres, adquire
outros sentidos. Continua
referindo-se
a diferenças e
desigualdades e, portanto, continua tendo
um caráter político. Entretanto, nas suas reformulações, o conceito de gênero, requer pensar não apenas nas distinções entre homens
e mulheres, entre masculino e feminino,
mas em como as construções de masculinidade
e feminilidade são criadas na
articulação com outras
diferenças de
raça, classe social, nacionalidade, idade; e como essas noções se
embaralham e misturam no
corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que, como intersexos, travestis e
transexuais, não se
deixam
classificar de maneira linear
como
apenas homens
ou mulheres.
Referência na íntegra:
PISCITELLI. Adriana. Diferenças, Igualdade. Gênero:
a história de um conceito.
São
Paulo.
2009.
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