terça-feira, 18 de abril de 2017

Gênero: a história de um conceito



Em uma sociedade historicamente marcada por diversas formas de vioncia e onde diversos sujeitos são atacados  e  menosprezados  por  determinadas  características,  discussões  acadêmicas  atuação  dos movimentos sociais no debate sobre gênero tem um papel importante no curso da história.


O termo gênero em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado dessas diferenças. O termo gênero referi-se também ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade.


Um rápido olhar sobre alguns indicadores no Brasil, mostra que a igualdade entre homens e mulheres está longe de ter sido atingida. As mulheres têm mais anos de estudo, em média, do que os homens. Segundo o Censo Escolar referente a 2005, as meninas são pouco mais da metade dos que terminam o ensino fundamental e o ensino médio.  No nível superior, a diferença é ainda maior. Mas o maior número de anos de estudo das mulheres não se reflete ainda numa igualdade salarial, o que se agrava mais ainda quando se trata de mulheres negras. Em média, as mulheres brancas ganham 40% menos do que os homens para o mesmo trabalho; e as mulheres negras, 60% menos.


Quando pensamos nas horas necessárias para realizar o trabalho de cuidar da casa e dos filhos, percebemos que no Brasil as mulheres que trabalham fora, além de ganhar menos que os homens, trabalham mais horas que eles. Isso porque não costuma haver uma divisão equitativa do trabalho doméstico.


Se, além de pensar nas diferenças nos sarios e nas horas de trabalho, também consideramos a violência sofrida pelas mulheres no Brasil, o quadro de desigualdades se torna mais crítico. Uma pesquisa realizada pela FPA chegou ao lculo de que a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil; 33% das mulheres entrevistadas sofreram violência física (ameaças com armas, agreses físicas, estupro conjugal ou abuso);  27% sofreram violências psíquicas; 11%  por cento afirmaram ter sofrido assédio sexual. Se os estupros massivos em situação de guerra estão longe de nossa realidade, a violência sexual, em situações de custódia do Estado, pode assumir conotações igualmente estarrecedoras.


Vale lembrar a detenção no Pará, em 2007, de uma adolescente pobre, de 15 anos, acusada de roubo. A garota foi mantida durante 26 dias em uma cela de uma delegacia de polícia com mais vinte homens. De acordo com as narrativas dos jornais, "a jovem disse ter sofrido abuso sexual dos cerca de vinte presos da cela, teve que fazer sexo com eles em troca de comida e foi agredida, apresentava hematomas e marcas de queimadura de cigarro pelo corpo". Após essa terrível notícia, foram difundidos outros casos de mulheres detidas em celas "mistas", em diversas partes do país.


Esse conjunto de indicadores e observações torna incontestável a necessidade, também no Brasil atual, de fazer esforços para compreender os lugares diferenciados e desiguais que as mulheres ocupam em diversas áreas da vida social, prestando atenção aos aspectos culturais que participam na delimitação desses lugares.


O conceito de gênero foi elaborado e reformulado em momentos específicos da história das teorias sociais sobre a "diferença sexual" e foi inovador em diversos sentidos. O psicanalista Stoller, em 1963, teria formulado o conceito de identidade de gênero para distinguir entre natureza e cultura. Assim, sexo está vin- culado à biologia (hormônios, genes, sistema nervoso e morfologia) e gênero tem relação com a cultura (psicologia,  sociologia,  incluindo  aqui  todo  o aprendizado  vivido  desde  o  nascimento).  O  produto  do trabalho da cultura sobre a biologia era a pessoa marcada por gênero, um homem ou uma mulher. Stoller entendia que quando nascemos somos classificados pelo nosso corpo, de acordo com os órgãos genitais, como menina ou menino. Mas as maneiras de ser homem ou mulher não derivam desses genitais, mas de aprendizados que são culturais, que variam segundo o momento histórico, o lugar, a classe social. Cabe ressaltar que às vezes, algumas pessoas nascem com traços genitais de um sexo, mas sua "identidade de gênero" está associada ao outro sexo. Stoller afirmava que esse conjunto de possibilidades existe porque
a "identidade de gênero", que está no plano da cultura, dos hábitos e dos aprendizados, não deriva dos genitais, que "pertencem" à natureza, à biologia." Por isso, é preciso separar natureza de cultura, entendendo que o que define as diferenças de gênero está no âmbito da cultura.


Porém, as formulões de gênero que tiveram impacto na teoria social foram elaboradas a partir do pensamento feminista, na década de 1970. Esse movimento social, que buscava para as mulheres os mesmos direitos dos homens, atuou decisivamente na formulação do conceito de gênero. As feministas utilizaram a ideia  de  gênero  como  diferença  produzida  na  cultura,  mas  uniram  essa  noção  a  preocupão  pelas situões de desigualdade vividas pelas mulheres.


A "primeira onda" do feminismo ocorreu entre o final do século XIX e XX. Esse primeiro momento se caracterizou por uma importante mobilização no continente europeu, na América do Norte e em outros países, impulsionada pela ideia de "direitos iguais à cidadania", que pressupunha a igualdade entre os sexos.


Entre as décadas de 1920 e 1930, as mulheres conseguiram, em vários países, romper com algumas das expressões mais agudas de sua desigualdade em termos formais ou legais.
As leis eram diferentes para homens e mulheres. As feministas reivindicavam, entre outras coisas, poder votar (numa época em que os homens votavam nas eleições), ter acesso à educação (ter o mesmo tempo de escolaridade dos meninos) e poder ter posses e bens (quando homens podiam ser proprietários de uma casa, por exemplo).


Segundo a pesquisadora estadunidense Mead, toda cultura determina, de algum modo, os papéis dos homens e das mulheres, mas não o faz necessariamente em termos de contraste entre as personalidades atribuídas pelas normas sociais para os dois sexos, nem em termos de dominação ou submissão.


Trabalhando na perspectiva dos papéis sexuais, autores e autoras como Margaret Mead apontaram para o caráter de construção cultural da diferença sexual. A perspectiva dos papéis sexuais resultou atraente para diversos estudiosos da diferença sexual porque conectava a estrutura social à formação da personalidade, de maneira relativamente simples. E isso ocorre por meio da "socialização" ou seja, pela incorporação das normas sociais relativas feminino e ao masculino. Exemplo dessa socialização, é como colocamos elementos no cotidiano das crianças, meninos vestem azul, brincam de bola e são mais agressivos, as meninas vestem rosa, brincam de boneca e são mais meigas. Quem foge disso é considerado impróprio.


Além disso, a perspectiva dos papéis sexuais permite contestar pressupostos biológicos sobre os comportamentos de homens e mulheres, ao afirmar que as atitudes  de uns e outras são diferentes porque respondem a diferentes expectativas sociais. Entretanto, nessa abordagem, as relações entre os sexos eram analisadas  sem  prestar  atenção  às  desigualdades,  às  relações  diferenciadas  de  poder  entre  homens  e mulheres.  Essa  produção  não  demonstrava  interesse  em  destacar  nem  compreender  os  fatores  que contribuem para situar as mulheres em posições inferiores.


Nas décadas de 1950 e 1960, os grupos feministas continuavam lutando pela igualdade de direitos. Mas em

1949 havia sido publicado um livro chamado, O segundo sexo, que contestava o efeito dessas lutas para eliminar a dominação masculina. O livro foi escrito por Simone de Beauvoir, filósofa e escritora francesa, convencida de que para eliminar essa dominação era necessário muito mais do que reformas nas leis, garantindo, por exemplo, o direito das mulheres ao voto. Ela considerava que o verdadeiramente importante era enfrentar os aspectos sociais que situavam a mulher em um lugar inferior. A autora afirmava que retirar as mulheres desse lugar seria possível ao se combater o conjunto de elementos que impediam que elas fossem realmente autônomas: a educação  que preparava as meninas para agradar aos  homens, para o casamento e a maternidade; o caráter opressivo do casamento para as mulheres, uma vez que, em vez de ser realizado por verdadeiro amor, era uma obrigação para se obter proteção e um lugar na sociedade; o fato de a  maternidade  não  ser  livre,  no  sentido  de  que  não  existia  um  controle  adequado  da  fertilidade  que


permitisse às mulheres escolherem se desejavam ou não ser es; a vigência de um duplo padrão de moralidade sexual, isto é, de normas diferenciadas que permitiam muito maior liberdade sexual aos homens; e, finalmente, a falta de trabalhos e profissões dignas e bem remuneradas que dessem oportunidade às mulheres de ter real independência econômica.


De acordo com Simone na perspectiva da construção social aponta que: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto [...]".


O segundo sexo é considerado precursor do feminismo da "segunda  onda", protagonizado por grupos organizados de mulheres, em diversas partes do mundo, a partir da década de 1960. Em termos políticos, consideram que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em relação aos homens. A subordinação feminina é pensada como algo que varia de acordo com a época histórica e o lugar.


Essas abordagens questionam o suposto caráter natural dessa subordinação, sustentando, ao contrário, que ela é decorrente das maneiras como a mulher é construída socialmente. Isto é fundamental compreender, pois a ideia subjacente é a de que o que é construído - ao não ser natural, inato, fixo - pode ser modificado. Portanto, alterando-se as maneiras como as mulheres são percebidas, seria possível mudar o espaço social por elas ocupado. Por esse motivo, o pensamento feminista da segunda onda colocou reivindicões voltadas para a igualdade  no  exercício  dos direitos, questionando, ao  mesmo tempo, as  raízes  culturais dessas desigualdades.


A categoria mulher foi desenvolvida pelo feminismo da segunda onda em leituras segundo as quais a opressão das mulheres está além de questões de classe e raça, atingindo todas as mulheres, inclusive as mulheres das classes altas e brancas. O reconhecimento político das mulheres como coletividade ancora-se na ideia de que o que une as mulheres ultrapassa em muito as diferenças entre elas. Isso criava uma "identidade" entre elas.


Considerando que as mulheres eram oprimidas enquanto mulheres e que suas experiências eram provas de sua opressão, chegou-se a conclusão de que a opressão feminina devia ser mapeada no espo em que as mulheres a viviam, isto é, nas suas vidas cotidianas, no lar, nas relações amorosas, no âmbito da família. Esse relacionamentos   era considerados,   sobretudo,   políticos,   na   medida   e qu "político"   é essencialmente definido como o que envolve uma relação de poder.



As feministas procuraram desvendaram multiplicidade de relações de poder presentes em todos os aspectos da vida social, nas esferas pública e privada. Em termos teóricos, elas trabalharam com uma ideia global e


unitária de poder, o patriarcado numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma relação política.


O conceito de patriarcado, útil do ponto de vista da mobilização política, colocou sérios problemas no que se referia às particularidades da condição feminina em diferentes lugares e épocas. O pensamento feminista procurou no patriarcado a idéia de uma origem, de um tempo anterior, quando teria começado a história da opressão das mulheres. E se o patriarcado teve um início, poderia ter um fim.


É importante compreender que o patriarcado, assim como outras explicações da origem e das causas da subordinação feminina, tinha o objetivo de demonstrar que a subordinação da mulher não é natural e que, portanto, é possível combatê-la. Pouco a pouco, as hipóteses explicativas sobre as origens da opressão feminina foram sendo questionadas, ao mesmo tempo que se buscavam ferramentas conceituais mais apropriadas para que essa opressão perdesse o caráter de algo natural e imutável.


O conceito de gênero se difundiu com foa inusitada a partir da formulação da antropóloga estadunidense

Gayle Rubin. Seu ensaio "O tráfico de mulheres: Notas sobre a economia política do sexo", publicado em

1975. Inserindo-se no debate sobre a natureza e as causas da subordinação social da mulher, Rubin elaborou um conceito que denominou sistema sexo/gênero. Segundo a autora, esse sistema é o conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Perguntando-se sobre as relações sociais que convertem as "fêmeas" em "mulheres domesticadas", a autora localiza essa passagem no trânsito entre natureza e cultura, no espo da sexualidade e da procrião.


Para Gayle Rubin, a divisão sexual do trabalho pode ser vista como um tabu contra a uniformidade de homens e mulheres, que divide o sexo em duas categorias excludentes. Todavia, ela também deve ser vista como um tabu contra outros arranjos sexuais que não aqueles que tenham pelo menos um homem e uma mulher, o que obriga ao casamento heterossexual. Assim, o tabu do incesto pressuporia, um tabu anterior, da homossexualidade. A assimetria de gênero, a diferença entre aquele que troca e o que é trocado, origina a repressão da sexualidade da mulher. Mas é importante perceber que esse é o efeito de um sistema que, reprimindo a sexualidade da mulher, está ancorado na obrigatoriedade da heterossexualidade.


O ponto mais importante da formulação sobre a diferença sexual nessa autora é pensar em gênero, articulado à sexualidade, como uma dimensão política. Para Gayle Rubin, gênero não é apenas uma identificação com um sexo, mas obriga que o desejo sexual seja orientado para o outro sexo. E percebe a opressão dos homossexuais como produto do mesmo sistema cujas regras e relões oprimem as mulheres.


As feministas negras e do "Terceiro Mundo" consideraram que no sistema sexo/gênero o foco singular no gênero  fazia  com  que  essa  categoria  obscurecesse  ou  subordinasse  todas  as  outras.  Sublinhando  as


diferenças entre mulheres, elas exigiram que gênero fosse pensado como parte de sistemas de diferenças, de acordo com os quais as distinções entre feminilidade e masculinidade se entrelaçam com distinções raciais, de nacionalidade, sexualidade, classe social e idade.


No entanto, várias autoras que participam desse movimento não concordam em trabalhar com a ideia de subordinação/dominação universal das mulheres, dividindo o mundo entre opressores e oprimidas. Elas preferem explorar situações particulares de dominação mediante análises que consideram o modo pelo qual o poder opera através de estrutura de dominação ltiplas e fluidas que se interceptam, posicionando as mulheres em lugares diferentes e em momentos históricos particulares. E, ao mesmo tempo, prestam atenção em como as pessoas, individual e coletivamente e opõem a essas estruturas de dominação, nos quais gênero se articula a classe, raça, nacionalidade, idade, não tem efeitos idênticos nas mulheres do Terceiro Mundo.


Nos anos 90 e 2000, várias autoras comaram a discutir sobre uma "Nova Política do Gênero", movimento de reivindicações de direitos sexuais que defende os interesses dos intersexos, transexuais e travestis. Considerando que a distinção entre masculino e feminino não esgota o sentido de gênero.


Segundo Judite Butler, um par de décadas atrás, a noção de discriminação de gênero se aplicava tacitamente às mulheres. No momento atual, a discriminação das mulheres continua existindo, particularmente quando se trata de mulheres pobres e/ou negras e/ou do "Terceiro Mundo". Entretanto discriminação de gênero atinge também homossexuais, transexuais e travestis, sujeitos à violência, a agressões e assassinatos por conta de sua identidade de gênero.


Sintetizando a trajetória do conceito de gênero, vemos que um termo, que se difundiu aludindo às diferenças e desigualdades que afetam as mulheres, adquire outros sentidos. Continua referindo-se a diferenças e desigualdades e, portanto, continua tendo um caráter político. Entretanto, nas suas reformulações, o conceito de gênero, requer pensar não apenas nas distinções entre homens e mulheres, entre masculino e feminino, mas em como as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na articulação com outras diferenças de raça, classe social, nacionalidade, idade; e como essas noções se embaralham e misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que, como intersexos, travestis e transexuais, não se deixam classificar de maneira linear como apenas homens ou mulheres.


Referência na íntegra: 

PISCITELLI. Adriana. Diferenças, Igualdade. Gênero: a história de um conceito. São Paulo. 2009.

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